Page 115 - Da Terra
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SACRO FILHO DO SOL                                                    FELICIDADE


 Os rapazes tocavam o búzio e as raparigas cantavam. Quem canta, seus   Vejo na televisão uma recons tuição dos primeiros homens palmilhando quilómetros de terra com suas tribos, armados de
 males espanta. Aquilo é que eram palmas. Ai, filho, sofrimento foi o que eu   lanças e de pedras, tapados com peles mal cur das, buscando abrigo em cavernas escuras onde terão aprendido a atear o

  ve  na  vida.  Éramos  apanhadas  numa  camionete  de  tromba  comprida,   fogo que aquece e ilumina. E o fogo projectava nas paredes sombras monstruosas que logo os povos se encarregaram de
 íamos pela noite que de dia não se podia. Ganhávamos 10 escudos, de sol a   colorir com sangue extraído ao barro de que eram feitos. Nos seus olhos luziam preocupações futuras, ter o que comer para
 sol, a carregar cestos em pau pesados que eu sei lá. Levavam a gente pela   se  manterem  ver cais,  encontrar  refúgio  onde  pudessem  sonhar  es rando  por  instantes  a  ver calidade  com  que

 fresca  e  já  sol-posto  nos  traziam.  Mulheres  e  homens  tudo  ao  mesmo.                enfrentavam inimigos. Milénios passaram sobre a chama da fogueira ex nta da qual sobram nuvens de fumo espalhadas
 A gente só não pisava. Depois casei e fui para a França. E foi lá que ouvi dizer:   pelo vento e um certo cheiro a queimado, um pouco por todo o lado presente.


            Estamos no Outono, é a época das queimadas, e eu planto a felicidade na página branca destes chãos onde brotam palavras
 Vin, fils sacré du Soleil  !    como messes que desejamos duradouras. Agora os homens ocupam-se com o sustento dos seus asilos electrificados,

            hipotecam a carne do próprio corpo a troco de um trabalho que permita cobrar facturas de água, luz e gás. Os homens

 Sabe o que é? Vossemecê de onde é se não é da minha conta? Foi quando   quase abandonaram a caça para serem presas tanto do medo como das suas próprias ambições, vão ao supermercado
 o sol acabou na minha vida. Meu marido teve um acidente, não podia   abastecer-se sem se darem conta do quanto deles apodrece exposto nas prateleiras.

 apanhar  sol,  e  largámos  o  campo.  Também  eu  fiz  o  meu  êxodo.  Ele
            Pelos carreiros, pelos matos, felicidade bateu vales para que o gado pastasse a força com que as terras deviam ser lavradas.
 trabalhava  na  fábrica  e  eu  fazia  limpezas  e  o  que  aparecia.  E  por  ter
            E agora plantado diante dela eu só consigo pensar que quando a guerra estalar os poetas serão os primeiros a fechar-se em
 perdido o sol foi que o vinho me alumiou. Vin, fils sacré du Soleil! Saberá
            casa, ligados a computadores produzidos com materiais extraídos por escravos em países subdesenvolvidos. De que cepa
 vossemecê  o  que  é?  Eu  ouço  contar  que  há  quem  beba  querendo
            eram feitas tais mulheres? O medo só não vence a fome, a fome só não vence a morte. Quando a guerra estalar dificilmente
 esquecer ou para perder a noção do mundo, mas comigo passou-se de
            dis nguiremos conservadores de progressistas. Uns terão cara de parvos, outros terão cara de tolos, e nada será como
 outro modo. Não fora ter o sol tão fora de mim, jamais um pingo desse mal
            dantes excepto o sangue derramado. Quando a guerra estalar, os vanguardistas quedarão está cos na linha mais recuada
 teria  entrado  no  meu  corpo.  É  do  pior  que  se  pode  fazer,  beber  às
            de um pelotão de inúteis, discu ndo a cor do céu quando na noite escura explodirem granadas para que nem a lua
 escondidas. Nem para esquecer, nem para perder a noção do mundo, nem
            deslumbremos a olho nu. Quando estalar a guerra e os canais de armazenamento entupirem com destroços de edi cios
 para morrer aos bocados. Comigo foi assim: queria o sol dentro de mim.
            desmoronados, alguém no seu canto enfim perceberá que o medo só não vence a fome, que a fome só não vence a morte.

                                                          Guerra é estar vivo. E pronto.




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